A Transformação do Princípio da Legalidade na Atividade Administrativa - Manuel Belchior

 A Transformação do Princípio da Legalidade na Atividade Administrativa


O princípio da legalidade surge no epicentro da Atividade Administrativa. Isto é, assume uma relevância tal que a conceção que hoje temos de legalidade sofreu uma mutação profunda, ao ponto de condicionar toda a atuação moderna da Administração Pública. Falamos, portanto, de um princípio que teve um nascimento traumático.


No Estado Liberal, no século XIX, quando o Direito Administrativo ainda estava numa fase embrionária, o princípio da legalidade surgia, na época, como um travão externo ao poder executivo: a Administração só podia intervir se houvesse uma autorização expressa na lei formal emanada pelo Parlamento. Ora, esta realidade fazia com que a Administração Pública gozasse de uma grande discricionariedade para atuar, no sentido em que era quase praticamente livre para fazer o que entendesse, pois era esta a lógica de liberdade que se pretendia preservar. Neste sentido, no fundo, legalidade apenas significava “reserva de lei” que, por si só, era uma reserva pequena. Se estivéssemos fora desta, encontrávamos-nos onde começava a liberdade de decidir, frequentemente associada ao recurso à força e à execução prévia contra o particular - que era, diga-se, um simples destinatário do poder estatal, na época. Deste modo, o princípio da legalidade por um lado, limitava a intervenção da AP mas, por outro, fazia algo muito mais significativo: mantinha o universo da arbitrariedade da Administração Pública. Esta ideia levava a que estivéssemos perante uma conceção real - de direito de propriedade - do Direito Púbico, concebido como uma realidade com limites. Era, portanto, definido não pelo seu sentido próprio, mas pelo seu limite externo. Ora, o facto de a Administração poder fazer o que bem entendesse fora destes limites levava a que, na prática, esta pudesse fazer o quisesse, visto que este limite era meramente formal: foi esta realidade que conduziu à postura agressiva e autoritária da Administração, usando a força física como garante da imposição da legalidade e segurança como forma de garantir a propriedade.


No século XX, esta lógica liberal decorrente do século transato chocava bastante com a evolução do papel do Estado na vida dos cidadãos e, consequentemente, a relação que este assume com outras fontes de Direito para além da lei. Relevam agora os princípios materiais de Direito que imperam em toda a ordem jurídica. Com a criação de, por exemplo, sistemas de saúde, de educação, de segurança social e de intervenção económica, a Administração confrontou-se diariamente com matérias que o legislador não podia prever em detalhe. A lei formal deixou de ser o único farol normativo, enquanto novas fontes - como regulamentos, contratos administrativos, tratados internacionais e, mais tarde, o Direito da União Europeia - ganharam força obrigatória. À medida que os direitos fundamentais se foram densificando e as expectativas cívicas subiam, era patente que a interpretação restrita de legalidade já não bastava para legitimar o agir público. É, assim, neste contexto, que a doutrina germânica, muito pela mão de Schmidt Assmann, propôs substituir a anterior conceção de legalidade pela ideia de juridicidade, na qual a Administração não se devia submeter apenas à lei, mas sim ao Direito como um todo.


Em Portugal, deu-se uma rutura com o primeiro CPA, já que se passou acreditar que era impossível obrigar a Administração Pública a princípios obrigatórios, aquando da sua atuação - um dos quais o princípio da audiência dos interessados. Com isto, o artigo 3º do CPA consagra exatamente esta ideia de sentido amplo da legalidade, considerando que o que está em causa é a contrariedade a toda norma jurídica, num lógica de um princípio de juridicidade - “os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito”. Este mesmo artigo espelha uma outra ideia: a Administração nunca é livre. Isto é, mesmo no domínio da discricionariedade, esta está submetida aos princípios constitucionais e ao controlo jurisdicional, atuando “dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins”. É este o sentido de legalidade que o legislador português escolheu adotar, levando a que os conceitos de legalidade e de juridicidade se interligassem totalmente entre si.


Numa perspetiva supralegal, a subordinação ao princípio da da legalidade significa a subordinação da Administração à Constituição da República Portuguesa, pelo facto de existir uma dupla dependência entre o Direito Constitucional e o Direito Administrativo - na perspetiva do professor Vasco Pereira da Silva. O mesmo se pode dizer relativamente ao Direito Internacional que vigora na ordem jurídica portuguesa, também com um valor supralegal, já que as normas e princípios do Direito Administrativo português têm que estar de acordo com este, devido à sua primazia e aplicabilidade direta que o caracteriza, por exemplo, em áreas como a contratação pública, concorrência, etc. Por fim, carece referir que existem regras aplicáveis diretamente a toda a Administração, precisamente porque são estas entidades internacionais que regulam assuntos administrativos, levando ao exercício do Direito Administrativo à escala global, sendo a sua aplicação controlada por tribunais internacionais. Falamos, portanto, de uma transformação da ordem jurídica que não cabia no quadro do princípio da legalidade formal.


Importa ainda fazer uma pequena nota sobre os regulamentos devido à importância que estes assumem e ao número de matérias que conseguem regular. Os regulamentos são, como se sabe, atuações gerais e/ou abstratas correspondentes a uma fonte normativa. Na maior parte dos casos, os regulamentos servem para executar leis anteriores mas, isto não invalida que existam regulamentos autónomos em que uma lei de autorização é suficiente para que um determinado órgão possa atuar - áreas como o urbanismo, por exemplo, espelham muito bem esta ideia, onde a Administração Pública, elabora um plano para organizar determinado território, bem como o destino do solo, sendo a própria lei que prevê a existência, elaboração e relevância destes planos. Contudo, são os regulamentos que determinam essa realidade do solo. Tudo isto para dizer que existem muitos domínios em que a Administração Pública atua pela via regulamentar e não legal o que leva a que existam fontes de Direito de caráter infralegal, que também decorrem do princípio da legalidade, já que a esta também compete integrar estas matérias como fontes de direito no quadro administrativo.


Assim, mais do que uma própria evolução, o princípio da legalidade reflete verdadeiramente uma evolução do atual Estado, como hoje o conhecemos. Se antigamente existia uma visão liberal, traumática, que pretendia conter um poder potencialmente opressivo, passámos hoje para modernas conceções do poder discricionário, em que a lei prevê que a Administração Pública escolha a opção mais adequada para a realização do interesse público, escolha essa que é balizada pela lei, mas não na perspetiva arbitrária da época liberal. O Professor Marcello Caetano dizia mesmo que a discricionariedade da Administração Pública era uma exceção ao princípio da legalidade. Ora, ainda que este entendimento traumático não seja mais justificável nos dias que correm, no quadro da legalidade, entende-se que para uma determinada atuação ser considera legal, a esta compete analisar muito mais que a simples lei - é imperativo ir muito mais longe, sob pena de colocar em causa o modelo de Administração Pública que atualmente conhecemos, caracterizada por valores democráticas e sempre, acima de tudo, vinculada à ideia de Estado de Direito. Foi, portanto, esta evolução que permitiu conciliar eficiência administrativa com interesse público, justiça e responsabilidade.


Manuel Belchior, aluno nº 140120028


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